30 de abril de 2019

Pelo trabalho inovador, Juíza Patrícia Neves empresta nome para lei

Em entrevista à Anamages, a Magistrada Patrícia Neves falou sobre os principais pontos do projeto Reconstruir o Viver, que se tornou programa e, agora, lei. Confira.

A Juíza de Direito Titular da 1ª Vara da Infância e da Juventude de Vila Velha e Coordenadora das Varas de Infância e Juventude do TJES, Patrícia Pereira Neves, recebeu honrosa homenagem do município de Vila Velha – ES, que sancionou a Lei Municipal de n° 6.132/2019, denominada Lei Juíza Patrícia Neves, em referência ao projeto “Reconstruir o Viver”, desenvolvido pela Magistrada, a partir de 2016, na Vara onde atua.

Desde então, o projeto fomenta a utilização de técnicas e medidas da Justiça Restaurativa, como a comunicação não violenta, a Mediação Comunitária e os Círculos de Construção de Paz e Conversação  como ferramentas de solução pacífica de conflitos e mudança de comportamento dos envolvidos, nos âmbitos dos processos judiciais e da Mediação Escolar. Em 2018, o Ato Normativo Conjunto nº 28/2018 viabilizou a ampliação do Reconstruir o Viver como programa para todo o estado do Espírito Santo, possibilitando ainda a instalação da Central da Justiça Restaurativa nos Juízos da Infância e da Juventude. Recentemente, ele foi implantado no ambiente escolar da rede municipal de ensino da cidade de Vila Velha.

De autoria do vereador professor Heliosandro Mattos, a ideia central da lei é contribuir para a disseminação da cultura de paz e não violência nas relações interpessoais entre os alunos e entre alunos e professores nas comunidades escolares. A alcunha foi por iniciativa do próprio vereador, em reconhecimento ao trabalho inovador da Magistrada. “É uma homenagem justa e merecida, especialmente devido ao interesse público contido no método que a Juíza Patrícia Neves implementou em âmbito judicial, no nosso Estado e na nossa cidade, por meio do programa ‘Reconstruir o Viver”.

Formação humana

A Juíza Patrícia Neves é graduada em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo. Possui curso incompleto de Ciências Econômicas pela UFES e especializações em Proteção ao Menor e Direito Econômico Penal e Europeu pela Universidade de Coimbra. Também é facilitadora de Círculos de Construção de Paz pela AJURIS.

Com quase três décadas de Magistratura, a magistrada se beneficiou da formação humana de uma época em que as pessoas aprendiam desde cedo a importância do outro. Assim, a magistrada carrega consigo os valores transmitidos pela família – pais e irmão – além das contribuições dos seus professores de Ensino Médio, de faculdade, mas, principalmente, do Ensino Fundamental, pois, comprovadamente, está vinculado ao período em que as crianças foram a sua personalidade. Ela considera como grandes ídolos e líderes seus professores, profissão exercida por seus pais e que ela também herdou. A Magistrada justifica que o projeto começou na escola, por acreditar que é neste ambiente onde devem ocorrer as transformações.

Em entrevista à ANAMAGES, a Magistrada falou sobre os principais pontos do projeto Reconstruir o Viver, que se tornou programa e, agora, lei. Confira a seguir.

ANAMAGES: Como começou o trabalho desenvolvido à frente das práticas de Justiça Restaurativa de Vila Velha?

Juíza de Direito Patrícia Neves: O projeto foi iniciado em 2016, em Vila Velha, mas tínhamos um projeto-piloto formatado há mais de 15 anos, porém sem possibilidade de ser levado a diante. Nós não tínhamos como fazer a capacitação, a mediação não era usual no Brasil e, como eu tinha feito um curso de mediação de crise em Portugal, quis muito fazer um projeto em que as pessoas buscassem caminhos mais pacíficos. No entanto, até a instituição da Res. 125 do CNJ, a mediação não era uma realidade no Brasil.

Nós, que trabalhamos na área da infância, sabemos o quanto de dor carregamos devido às tantas vidas que vão se perdendo sem que se solucionem os problemas que levam àqueles processos judiciais, aos tantos futuros interrompidos – e isso traz muita amargura a todos que atuam na área, sejam membros do Ministério Público, Defensoria, etc. Em 2016, eu reescrevi o projeto para além da mediação, levando em consideração as práticas restaurativas e a comunicação não violenta. Eu não sabia se haveria possibilidade de ser desenvolvido e conversei com o então Desembargador Diretor da Escola da Magistratura do ES, que hoje é o nosso Desembargador Corregedor, Samuel Meira Brasil Junior. E ele demonstrou todo o interesse no auxílio da implantação do projeto com a promessa de que a gente pudesse estender para o resto do estado. Em um segundo momento, procurei o então Presidente do TRE e hoje Presidente do TJES, Desembargador Sérgio Luiz Teixeira Gama, que foi coordenador dos Juizados Especiais por muito tempo e ficou empolgado, dando total apoio. Ele informou até que se não houvesse possibilidade naquela gestão, em sua administração, me daria total auxílio, mas, então, recebi todo o apoio do então Presidente do TJES, Desembargador Aníbal Resende Lima, e da coordenadora do Nupemec, Desembargadora Janete Vargas Simões.

Após esse fundamental apoio, fizemos a capacitação da primeira turma de Justiça Restaurativa por meio da Escola da Magistratura. Entendemos que a rede de atendimento tem de estar envolvida, e não só servidores do Poder Judiciário. Então, tivemos a participação de representantes da Polícia Militar, do Instituto Socio-Educativo do Estado, dos CREAs de todos os cinco municípios que compõe a comarca da Capital e da região metropolitana da grande Vitória. Fui pessoalmente responsável pela supervisão do estágio dos círculos não conflitivos, inicialmente os círculos de conversação, e, na medida em que foram sendo realizados, a demanda se tornou muito grande.

ANAMAGES: Como foi a absorção do projeto pelo Tribunal e pelo município de Vila Velha:

Juíza de Direito Patrícia Neves: Apresentado ao gabinete de gestão integrada de Vila Velha, o projeto foi prontamente aceito pelos Poderes Executivo, Legislativo, Municipais, pelas Forças Armadas, que estavam presentes, pelas forças de segurança estadual (polícia civil e militar), pela polícia federal e pela sociedade civil ali representada. A partir disso, começamos a capacitar e a formar uma instrutora do Poder Judiciário em círculos restaurativos não conflitivos, com a nossa ideia de levar para a sociedade um sistema misto. Ou seja: nós escolheríamos as instituições e formaríamos não apenas as pessoas daquela instituição, mas também as pessoas da sociedade como um todo. Afinal, nós queremos uma mudança de paradigma e a reimplantação de uma cultura de paz e, para isso é necessário que todos se envolvam nesse processo. Começamos a capacitação e a mediação escolar, a mediação comunitária e, depois, os círculos restaurativos não conflitivos. Para o biênio 2018/2019 foi escolhido como Supervisor das Varas da Infância e Juventude do ES o Desembargador Jorge Henrique Valle dos Santos, que tornou estadual o programa e é um grande incentivador de sua expansão e consolidação como rotina de pacificação social.

ANAMAGES: De que forma o projeto ganhou as proporções da atualidade?

Juíza de Direito Patrícia Neves: A realidade foi se ampliando e hoje em dia a demanda é muito maior do que imaginávamos ser. Já formamos mais de 15 instrutores, tanto em Justiça Restaurativa, quanto em círculos de pais e fazemos a mediação escolar com o apoio da Universidade Federal do Espírito Santo, por meio do Núcleo de Direito de Mediação, em que auxiliam na capacitação dos professores. Nesse sistema misto, temos como estágio dos professores a capacitação de outros colegas professores para capacitarem alunos. Então, temos centenas de alunos mediadores em Vila Velha, um bom número de professores mediadores (mais de uma centena), mais de 500 facilitadores de círculo de pais e mais de três mil pessoas, que já passaram pelo workshop de comunicação não-violenta. No final disso tudo, assumi a Coordenadoria Estadual da Infância e Juventude e o Tribunal de Justiça, com o objetivo de ampliar o projeto, baixou um ato conjunto tornando-o um programa estadual. Assim, chegamos aos cinco municípios da grande Vitória e mais três municípios do interior. O objetivo é que a gente vá, dentro das nossas possibilidades, para todo o Estado.

As mudanças, tanto nos processos judiciais, quanto no seio da sociedade são impressionantes Nos locais aonde chegaram as técnicas não temos mais os casos de violência que tínhamos anteriormente. E o projeto em si traz em seu escopo os métodos adequados de solução de conflitos utilizados no mundo do Direito para que sejam utilizados como ferramentas de pacificação social para toda a sociedade.

Tudo isso envolve um longo trabalho de sensibilização das pessoas, com centenas de reuniões realizadas. Mas a forma de as pessoas entenderem a importância da capacitação técnica dessas ferramentas é vendo que todos nós lidamos com conflitos diariamente. Muitas vezes, na vida profissional nós somatizamos a dor ao solucionar esses conflitos porque não temos essa capacitação técnica para administrar essas situações de uma forma mais tranquila e menos pessoal.

Quando foi oferecida essa opção e as pessoas então começarem a usar essas ferramentas, deixaram de ter tanto sofrimento pessoal diante dos conflitos, notadamente nas escolas, CRAS, CREAs, unidades de saúde, no atendimento às ocorrências feitos pela Policia Militar, Policia Civil, guarda municipal. Todos são operadores, funcionários que lidam na ponta com soluções de conflito diariamente. No momento em que se percebeu que as ferramentas são importantes e efetivas, a demanda se tornou muito grande. Mas, na verdade, o mais impressionante é que não foi a demanda que se tornou muito grande e, sim, a aceitação e a empolgação diante da mudança de realidade, porque são técnicas que nos mudam incialmente. É o retorno da nossa ancestralidade, marcada por se ouvir e falar com respeito, em um espaço seguro. Assim, temos uma conversa empática, em que ouvir e respeitar o outro é fundamental, mesmo que não se concorde com o que é falado.

ANAMAGES: A seu ver, a que se deve o crescimento do programa?

Juíza de Direito Patrícia Neves: A partir do momento em que os envolvidos perceberam as mudanças pessoais e de postura, além das mudanças gerais, começaram a surgir novas demandas e estamos tentando atender a todas, até porque nossas atividades não são exclusivamente o programa, todos nós exercemos as nossas funções. Como Juíza e coordenadora junto ao Tribunal de Justiça, eu a minha turma de servidores fomos os primeiros a sermos capacitados. Tudo o que fazemos é feito de forma voluntária, com a autorização das chefias. E foi isso que fez esse programa crescer. Além é claro do fato de ser ofertado para crianças e adolescentes, o que fez com todos aderissem com tanto carinho e responsabilidade – e quando nós vimos acontecerem tantas mudanças de vidas, isso que nos faz caminhar. No âmbito judicial, observarmos que aquilo que era decidido por uma sentença sempre iria deixar uma pessoa insatisfeita, que nós conseguíamos realmente restaurar aquelas relações que foram rompidas, porque no final de tudo é isso o que as ferramentas da Justiça Restaurativa preveem: que as pessoas sejam capazes de buscar as soluções dos seus próprios problemas, construir saídas de forma coletiva.