18 de Maio de 2023

A Juíza e a sua história – Dra. Júnia Feitosa – TJPI

A magistratura estadual enfrenta historicamente grandes desafios.

De acordo com o Relatório Justiça em Números de 2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a justiça estadual concentra 71% dos novos casos ingressados no judiciário, o que representa o maior fluxo de processos da justiça brasileira. Além do desafio da produtividade, outros tantos obstáculos recaem sobre os ombros dos juízes de direito que encontram na ANAMAGES – única entidade a representar nacional e exclusivamente a classe da Judicatura Estadual – uma associação que defende e valoriza a magistratura de forma genuína.

Diante desse firme propósito de valorizar o trabalho desempenhado pelos juízes de direito, que representam majoritariamente a magistratura brasileira, a ANAMAGES inicia hoje, uma série de entrevistas intitulada “O JUIZ E A SUA HISTÓRIA”, com a finalidade de expor trajetórias de lutas, de compromisso vocacionado e de sucesso na judicatura.

Para iniciar o quadro, conversamos com a juíza de direito Dra. Júnia Feitosa, titular da 4ª Vara Criminal de Teresina, serventia incumbida pelo trâmite e julgamento das grandes e complexas questões criminais, as quais vitimizam a sociedade da Capital.

Aprovada em concurso público no ano de 1989, a magistrada somente assumiria as suas funções anos mais tarde, após ingressar juntamente com outros 12 candidatos através de Mandado de Segurança junto ao STF. A partir de então, iniciou a sua judicatura pela longínqua comarca de Parnaguá, extremo sul do Piauí, a 800km da capital, percorrendo ao longo da sua carreira por vários rincões deste Estado.

Durante esse tempo, as dificuldades enfrentadas foram enormes, desde a falta de materiais para trabalhar à carência de servidores, somando-se, ainda, a isso, a problemática das eleições municipais, quase sempre efervescentes em face dos ânimos acirrados na política nordestina.

No decorrer dessa trajetória magistratural, a Dra. Júnia Feitosa passou a responder pela comarca de Matias Olímpio, onde permaneceu por longos cinco anos, também muito distante e permeada dos mesmos problemas, dentre os quais se destaca locais para hospedagem, que se agravavam ante a condição de mulher, naquela ocasião sozinha para gerir e pacificar os conflitos daquela cidade. 

Após, a magistrada foi promovida e titularizada na Comarca de Arraial, onde permaneceu também por cinco anos, sendo promovida posteriormente para Pio IX, cuja estada se deu por três anos e, finalmente, Palmeirais, nesta última exerceu a Judicatura por seis anos, chegando à 4ª entrância, Comarca de Teresina, promovida por antiguidade.

A magistrada, além de vocacionada e comprometida com a função pública, possui uma atuação incisiva no combate a criminalidade de Teresina, e por detrás de um sorriso fácil e alegre, gentil e educada, encontra-se uma mulher destemida e que não transige com afronta a lei, sendo reconhecida pelo brilhante trabalho desenvolvido sob a serventia de sua competência.

Para conhecermos melhor a história e o trabalho da magistrada, esta prestou a ANAMAGES a seguinte entrevista:

ANAMAGES: A senhora tem uma trajetória de vida de muitas lutas, desde ainda quando criança, poderia nos relatar alguma dessas passagens?

Dra. Júnia Feitosa: Todos nós temos desafios e obstáculos em nossa vida e estamos sempre procurando superá-los. Eu costumo dizer que eu era um projeto para não dar certo. Nasci à beira do rio Mearim, no interior do Maranhão, num lugarejo chamado Palmeiral. Meus pais, fazendeiros e comerciantes prósperos, donos da única farmácia do lugar, tiveram que vender tudo e irem residir em Teresina para tentar salvar a minha vida, única filha do casal e que adquiriu uma doença, àquela época rara e de difícil diagnóstico. Meus pais haviam perdido uma filha de um ano e seis meses, então eles estavam deseperados com o meu problema de saúde e tomaram a decisão de morar em Teresina.

Para se ter uma ideia, eu com quatro anos de idade tive extraídos todos os dentes que eu tinha por conta de um diagnóstico errado. Pois bem, não morri e fui curada, graças a Deus. Considero este fato como o primeiro grande desafio da minha vida, que sobrevivi desta doença.

ANAMAGES: O que motivou a senhora a ingressar na magistratura?

Dra. Júnia Feitosa: Apesar da infância tão difícil já relatada, eu nunca me vitimizei, sempre fui muito decidida com o que eu queria para a minha vida. E decidi, desde sempre, que eu seria Juíza Estadual. Isso, espelhada em um tio que era juiz e que me deixava encantada ao vê-lo atuar. Então, fiz após a graduação e prestei o concurso para a magistratura Piauiense no ano de 1989. Fui aprovada e classificada entre o número de vagas oferecidas. Entretanto, só fui nomeada e empossada oito anos depois, após uma longa batalha judicial. Existiam as vagas, inclusive previstas no edital do certame, mas o Tribunal de Justiça decidiu não prorrogar a validade do concurso e nem nomear os candidatos aprovados e classificados dentro das vagas. E ainda decidiu abrir novo certame com a publicação de um novo edital. Assim, eu e mais outros colegas entramos com Mandado de Segurança, obtendo apenas oito anos depois, no Supremo Tribunal Federal, um resultado positivo, sendo, enfim, nomeados e empossados, entrando em exercício no dia 21 de maio de 1996. Para mim, este foi o segundo grande desafio da minha vida: brigar para ver garantido o meu direito de ser juíza estadual do Piauí.

ANAMAGES: Quais foram os maiores desafios na judicatura e como a senhora conseguiu superá-los?

Dra. Júnia Feitosa: Bem, na carreira, os desafios e obstáculos são enormes. E vão desde a discriminação pelo fato de eu ser mulher, até a dificuldade de conciliar essa multiplicidade de papéis que nós mulheres temos, que é ser profissional, mãe, esposa, filha, dona de casa e outros. Durante mais de 18 anos, eu fui mãe por telefone, eu orientava tarefa por telefone, eu cantava para ninar por telefone, eu separava brigas e acalmava os meninos por telefone – crianças com idade de três, seis e sete anos – esposa e dona de casa por telefone, sem contar que naquela época, quando eu ingressei na magistratura, não havia o telefone celular. Você tinha nas comarcas um posto telefônico que agraciava o Juiz com um ramal e tudo o que eu conversava, a cidade toda sabia, inclusive. Não havia nenhuma privacidade. Outro desafio, o mais difícil de todos, foi quando após 18 anos de carreira, e recém-empossada na 4ª Vara Criminal de Teresina, perdi repentina e abruptamente o meu esposo, após 34 anos de vida comum. Então, não sei classificar se foi um desafio ou um obstáculo, ou mesmo ambos, mas foi um momento muito difícil e que a magistratura muito me ajudou, porque eu passei quase que a usar o meu trabalho como fuga. Recém-promovida para a Vara Criminal da Capital, com muitos desafios, bem diferente do interior, muitos advogados buscando atendimento, o volume de processos muito grande, então eu realmente trabalhava de manhã até tarde da noite. Foi o meu terceiro grande desafio, seguir sem o meu companheiro de 34 anos, mas a magistratura me fortaleceu, repita-se, e me ajudou a enfrentar este delicado momento.

ANAMAGES: A senhora é uma magistrada que consegue o reconhecimento dos seus pares especialmente pela atuação justa e firme no combate a criminalidade. Como a senhora avalia o seu trabalho?

Dra. Júnia Feitosa: Penso que o meu trabalho consegue alcançar o objetivo a que se destina. O propósito almejado quando eu decidi ingressar na magistratura, que é uma boa prestação jurisdicional, a busca pela pacificação social e sempre em observância aos princípios norteadores da magistratura, como a independência, a imparcialidade, conhecimento, capacitação, princípio da transparência, agindo com prudência e sempre diligente. Agindo com coragem e integridade profissional e pessoal, não esquecendo da honra e do decoro. Eu estou há nove anos à frente de uma Vara na Capital do Piauí e, eu costumo dizer que levamos o nosso trabalho de uma forma compromissada, apesar dos percalços que a própria criminalidade enseja. Passados 27 anos de magistratura, ainda tenho encantamento pelo que faço, pela magistratura e é isso o que me faz desempenhar o meu papel, ao meu sentir de boa qualidade, ressalva-se a modéstia, pois os números atestam o alcance do objetivo na entrega das nossas decisões. 

ANAMAGES: Para encerrar nossa entrevista, como a senhora avalia a magistratura do passado, do presente e do futuro diante dos novos tempos?

Dra. Júnia Feitosa: Não há como negar que da máquina de escrever ao computador, a justiça deu um grande salto em qualidade e rapidez, e muito contribuiu para combater a morosidade. No presente é inegável que esse avanço da tecnologia somado as imposições do triste momento da pandemia, as audiências virtuais muito contribuíram, os números comprovam que durante esse período nunca se julgou tanto em toda a história do judiciário. O futuro, não podemos prever, sabemos que a Inteligência Artificial (IA) já é uma realidade, respostas e soluções aos mais difíceis assuntos se apresentam robotizados, entretanto, penitencio-me do entender que o ofício do julgador e da sua alma na auscultação do problema judicializado jamais poderá prescindir da sensibilidade humana para pacificar o ofício a que serve.